Todos os anos, pelo menos duas vezes, vamos visitar a minha mãe em Santa Rosa. Para mim é um retorno ao cenário de infância que pouco mudou. Para Laura é uma troca do ambiente urbano pelo rural com muita permissividade e múltiplas possibilidades. Cada ano ela e sua prima inventam alguma coisa nova para sua semana de férias. Teve um ano que elas corriam como loucas pelos caminhos e lavouras com um bugui, perseguidas pelos fiéis cachorros, lembrando cenas do filme Mulheres à beira de um ataque de nervos,de Almodovar. No ano passado fizemos uma fogueira de São João que durou 6 dias com direito a batata doce na brasa, pinhão e fogos de artifício.
Este ano foi a vez do galinheiro, coitado, abandonado e desgalinhado por muitos anos. Como o frio deste inverno estava intenso demais para aventuras a céu aberto, as duas resolveram dar uma garibada no galinheiro. Varrer, pregar caixotes nas paredes, repregar tábuas soltas.
Uma pia improvisada abastecida com o regador. Uma mesa sobre frágeis patas de aluminio foi estabilizada com o peso de uma abóbora. Dois pneus velhos guarnecidos de duas almofadas serviam de confortável sofá, enquanto desenhavam
No inverno gaúcho não pode faltar o fogo de chão, sempre transformando qualquer ambiente em aconchego. No fogo não pode faltar o salsichão acompanhado de pão de alho. Na minha infância, no inverno, meus pais carneavam um porco e um boi. Escolhiam o frio da estação por causa da falta de moscas e da melhor conservação da carne. Dos animais só sobravam os ossos. Os cachorros se jogavam pelos cantos, redondos, pareciam que iriam explodir a qualquer momento. A mim cabia a função de manivelador da máquina de encher linguiça, mexedor do panelão de banha com uma enorme colher de pau preta nas pontas, para que o toucinho não grudasse no fundo da panela. No fim de tudo também mexia o panelão onde todas as sobras viravam sabão. Também apertava o torniquete da prensa de banha. O ambiente sempre frio mas aquecido pela fogueira do caldeirão. Com tantos anos de horas-caldeirão acho que teria créditos suficientes para receber a titulação de auxiliar de bruxa.
Mas idos foram estes tempos. Minha mãe rendeu-se aos limites da idade e aos confortos da modernidade. A linguiça agora vem do supermercado bem como as verduras. Ela abandonou o forno de lenha mas continua assando pão no forno elétrico. O sítio tem muitas frutíferas cujos frutos rendem deliciosas geléias.
O ripado do galinheiro deveria servir de exaustor, mas a fumaça não sabia disso.
Acompanhar a lenta transformação de um espaço abandonado em uma gostosa atmosfera invernal pelas crianças dá uma sensação de que por isso também a vida vale a pena. Existe muita plenitude e eternidade nestas coisas tão simples.
Acompanhar a lenta transformação de um espaço abandonado em uma gostosa atmosfera invernal pelas crianças dá uma sensação de que por isso também a vida vale a pena. Existe muita plenitude e eternidade nestas coisas tão simples.
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7 comentários:
Rui, que fantástico. Eu também fazia destas na minhas férias no sítio dos meus avós. Só que não era o galinheiro. Era o paiol. Fofas, estas duas. beijos, N
Lindo texto, belas fotos.
Bom dia,
Eliane.
Rui
Esta experiência aparentemente simples e descomplicada para as meninas contém em si uma densidade existencial ENORME impossível de ser mensurada.
E você, com esse seu olhar agudo de sacação infinita, não poderia mesmo deixar passar!
Abraços
P.S. O seu texto me lembrou de um livro, que você, por ser ceramista talvez já conheça, mas eu queria registrar aqui. Chama-se "A Psicanálise do Fogo", de Gaston Bachelard.
Uma das páginas mais bonitas dele é justamente dedicada ao argumento de que o aprendizado do fogo se dá em casa, sendo, portanto, familiar e social. Ali, Bachelard conta sua própria experiência, ao aprender a lidar com o fogo com o seu pai.
Um abraço,
Eliane Lordello.
uma das melhores postagens deste blog...
Oi rui
Como sempre, um expert com as palavras. Que dom magnífico... Nem precisariam as fotos, pois o texto em si já é ilustrativo... Mas a Laura tá lindona de gorro...
beijinhos, vanessa
Tudo muito lindo. Este post rendeu-me boas lembranças de infância, como a sua, como a das meninas.
Bom finde.
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